Investir em oportunidades de aprendizagem leva a resultados mais autênticos

junho 20, 2017 | por Luciano Bitencourt

“Precisamos analisar o aprendizado como o produto da auto-organização educacional. Se você permitir que o processo educacional se auto-organize, o aprendizado surge. Não é fazer o aprendizado acontecer. É deixar que ele aconteça. O professor coloca o processo em movimento e então se afasta maravilhado e observa o aprendizado acontecer”.

As ideias de Sugatra Mitra, um professor-pesquisador indiano cuja experiência tornou-se bastante singular para a educação, são inspiradoras. Ele desenvolve há alguns anos um projeto ousado e desafiador. Ousado porque propõe mudanças radicais no ambiente escolar e dasafiador porque sugere a possibilidade de aprendizagem sem a condução de alguém com autoridade para isso. A Escola na Nuvem é, na verdade, um conceito.

Nós ainda adotamos uma concepção escolarizada para o termo conhecimento. É como se ele fosse algo disponível para ser acessado, uma referência pronta e acabada que fornece um alcance desejável. Claro, não há mais unanimidade quanto a esse tipo de concepção, mas muita gente ainda considera que conhecer é alcançar uma certa projeção, é dar respostas a uma hierarquia de conteúdos definidos e escalonados numa linha de tempo, do mais simples para o mais complexo.

Sugata Mitra nos fornece pistas para pensar melhor a respeito. A Índia é um país bastante desigual, onde as oportunidades não se apresentam a todos com a mesma intensidade. O professor descobriu que, mesmo em comunidades onde a aprendizagem parecia difícil, bastava tornar acessíveis tecnologia e conteúdos complexos para que as crianças demonstrassem uma incrível capacidade de descobrir soluções sozinhas e ensinar umas às outras.

Isso nos faz pensar que, apesar de todos os esforços disruptivos quanto aos recursos necessários para revolucionar a educação, uma das principais tecnologias desenvolvidas para sistematizar o processo de aprendizagem permanece como problema intocável. O currículo ainda é pensado para atender a critérios inscritos no passado, para analisar respostas dadas a questões muitas vezes já superadas. Diz Mitra:

“Acho que precisamos de um currículo com grandes perguntas”.

 

Separar competência de currículo

No início dos anos 70, o austríaco Ivan Illich sugeria a desescolarização da educação. A proposta, bastante radical para a época, tem por base a adoção de redes de aprendizagem que valorizem a autonomia, tanto no processo quanto nas escolhas de percurso. Passado mais de meio século, as ideias de Illich ainda encontram ressonância.

No livro Sociedade sem Escola, a proposição tem um viés educacional associado a uma concepção de sociedade mais libertária no que diz respeito ao desenvolvimento das pessoas. No campo econômico, as sugestões davam conta de investimento em formas de acesso e oportunidades de escolha, ao invés de reforço numa estrutura para controlar a obtenção de requisitos e certificados. Illich descreve uma estrutura pesada, dispendiosa e estática que, na visão dele, serve de justificativa para discriminar capacidades e gerar desigualdades.

“Para separar competência de currículo, as investigações sobre o histórico da escolaridade de uma pessoa deveriam ser proibidas, da mesma forma como o são sobre credo político, frequência à igreja, linhagem, hábitos sexuais ou background racial” (p.27).

Em outras palavras, Illich defende que a exigência de escolaridade prévia é uma forma de discriminação e que o sistema educacional está sustentado na ilusão de que os processos de aprendizagem são resultado do ensino. No fundo, a sociedade baseada nesses parâmetros, para o austríaco, acaba valorizando mais os títulos do que a formação propriamente dita. A solução estaria, portanto, na adoção de estruturas que permitam processos de aprendizagem autodirigida.

Esse debate não soa mais tão radical nos dias de hoje. Existem experiências já em andamento. A própria Escola na Nuvem é uma delas. Mas uma questão importante ainda continua em pauta. Os currículos, sejam escolares ou pessoais, ainda priorizam referências que exigem documentos comprobatórios. A formação precisa estar descrita e chancelada, ainda que de forma padronizada para facilitar o reconhecimento.

Entre o potencial e o autêntico

Tanto Mitra quanto Illich nos fornecem subsídios bastante sólidos para pensar a respeito da aprendizagem e dos sistemas que usamos para promovê-la. Uma certa lógica consagrada no campo da educação formal tem sido incorporada a projetos que deveriam, por princípio, estimular oportunidades de compartilhamento e uma boa dose de horizontalidade na construção de conhecimentos.

É importante enfatizar que a escola é também um tipo de organização e está sujeita ao complexo momento em que vivemos. Nessa organização em particular se tem dito com cada vez mais ênfase que os talentos são cerceados por conta de um processo homogêneo e seriado de ensino, pela falta de ambientes adequados às possibilidades de criação e aos interesses dos estudantes. Promover espaços em que se demonstre capacidades de atuação e saberes relacionados às ações propostas parece essencial nesse cenário.

Poderíamos, em síntese, dividir os esquemas de ações em dois grandes grupos que nos ajudariam a entender como separar competência de currículo: 1) o das capacidades potenciais, que podem ser identificadas em alguém que não tomou consciência delas ainda ou podem ser elaboradas como ideais para determinadas circunstâncias; e 2) o das capacidades autênticas, que podem ser desenvolvidas em ambientes adequados e avaliadas em função do desempenho.

Quando se percebe alguém que parece saber agir em circunstâncias específicas ou se desenha um perfil para um cargo ou uma função, por exemplo, há um potencial em termos de capacidades que subsidia uma certa projeção. Para dar autenticidade a esse potencial, os talentos e os perfis têm de se concretizar em competências reconhecidas pelo desempenho em diferentes dimensões: intelectuais, técnico-funcionais, comportamentais, éticas e políticas.

Os investimentos na efetivação de capacidades potenciais em capacidades autênticas têm, geralmente, reproduzido o que Ivan Illich criticava há quase 50 anos. Hoje, as tecnologias têm servido de instrumento de controle para garantir resultados, quando poderiam estar a serviço de uma rede de oportunidades. O enfoque nos investimentos está muito mais no desempenho do que no potencial. E isso interfere diretamente nos espaços em que se promove a aprendizagem.

Pensar em grandes questões parece muito mais estimulante do que programar trilhas para se alcançar certos resultados. Como sugere Sgata Mitra, adequar ambientes para que as pessoas possam, no momento em que atuam, pensar respostas e sugerir ações oferece um potencial riquíssimo em termos de desempenho, mesmo que não programado.

Percebe-se um cenário, portanto, que sugere mais investimento no potencial para se alcançar resultados mais autênticos. O que significa investir mais em oportunidades de aprendizagem e menos em controle de processos formativos.

Luciano Bitencourt

Formado em Jornalismo, é professor universitário daquela graduação há mais de 15 anos. Já atuou como repórter e participou de diversos projetos na área. É sócio-proprietário da Akademis.